Artigo

Os 'três Marcelos'
Como um 'terceiro candidato' acabou influenciando o segundo turno das eleições no Rio de Janeiro


Ao final do primeiro turno, Marcelo Freixo tinha muito o que comemorar: a chegada ao segundo turno significava, simultaneamente, deixar o PMDB fora da disputa pela Prefeitura do Rio, passar a ter o mesmo tempo de exibição no rádio e na TV que seu opositor e a possibilidade de “virar o jogo” em menos de um mês, já que poderia absorver votos de candidatos derrotados e ainda de parte dos eleitores indecisos no primeiro pleito. Mas a votação encerrada deste 30 de outubro no Rio de Janeiro, e a confirmação de Marcelo Crivella como novo prefeito da Cidade Maravilhosa, mostraram uma realidade bem diferente daquele planejada quatro semanas antes - e parte da culpa pode ser atribuída à presença de um “terceiro Marcelo” nesta disputa eleitoral.

Crivella, o primeiro Marcelo aqui analisado, desde sempre teve sua imagem associada à Igreja Universal do Reino de Deus, da qual é pastor. Isto não o impediu de eleger-se e reeleger-se senador do estado do Rio de Janeiro desde 2002, mas foi fator decisivo na eleição para governador em 2014: o PMDB não poupou ataques ao “lobo em pele de cordeiro”, como Pezão se referia a seu oponente, e muitas imagens de discursos de Crivella foram utilizadas no horário de TV, além da associação do evangélico com o ex-governador Anthony Garotinho, detentor de alto índice de rejeição entre os cariocas. As mesmas estratégias foram usadas em 2016, porém sem produzir o mesmo efeito. Segundo pesquisas realizadas por diversos institutos, Crivella conseguiu reduzir sua rejeição e obter votos não só de evangélicos: era o preferido entre eleitores de ensino médio, entre os que ganham até 5 salários mínimos e entre os que têm mais de 25 anos - ou seja, a maioria do eleitorado.

Freixo, o segundo Marcelo, chegou pela primeira vez ao segundo turno de uma disputa pelo posto máximo do Executivo municipal. Liderou, também segundo pesquisas, entre os mais jovens (16 a 24 anos), entre os com renda acima de 5 salários mínimos e entre os que possuem ensino superior. Sua campanha em muito me lembrou as de Lula para a presidência da República, há duas décadas - inclusive, alguns dos artistas que nos anos 90 apoiaram o petista gravaram depoimentos e jingles em favor do candidato do PSol. Mas os números de 2 de outubro já indicavam uma tendência: se em 2012 Freixo obteve 914 mil votos (no turno único), quatro anos depois passou ao segundo turno com pouco mais de 553 mil votos. Mesmo herdando o voto dos eleitores de alguns candidatos derrotados, era preciso conquistar os indecisos, os que se abstiveram de votar e os que haviam anulado seus votos na primeira etapa das eleições. E para isso era fundamental traçar uma boa estratégia de marketing, aproveitando especialmente o tempo na TV, ampliado de 11 segundos para 10 minutos em cada bloco de propaganda eleitoral.

Porém, com a exposição ampliada do candidato, entrou em cena um “terceiro Marcelo”, aos quais internautas chamaram (maldosamente, devo admitir) de “Marcelo frouxo”. Uma dúvida pairava no ar: se eleito, Freixo manteria seu discurso de não reconhecimento de um presidente dito “golpista” e deixaria de lado o diálogo com a esfera federal, ou ele voltaria atrás e contrariaria a si mesmo diante da primeira necessidade? Nem o apoio de boa parte do secretariado de Eduardo Paes, nem o uso das estratégias sugeridas por marqueteiros do PMDB e nem a capa da Veja a uma semana das eleições conseguiram reverter a incredulidade que pairava sobre Freixo. Pelo contrário: todas estas contradições (naturais na política) só fizeram aumentar as especulações sobre uma aproximação do candidato com a mídia e os políticos que tanto atacou. E aos poucos, o “terceiro Marcelo” foi tirando votos do segundo - mas não necessariamente em favor do primeiro.

Ciente de que dificilmente mudaria os votos dos eleitores de Crivella, a única chance de Freixo era convencer os eleitores que no primeiro turno anularam seu voto e os que não compareceram à votação de que era a melhor alternativa para os próximos quatro anos. Mas nem ele, nem sua equipe, perceberam que o perfil dos sufragistas mudou: uma vez que o eleitorado tornou-se plural (e não formado apenas por “coxinhas” ou “socialistas de iPhone”, como muitos ainda acreditam), a eleição não poderia ser reduzida a uma disputa entre esquerda e direita, ou entre “esquerda e não esquerda”. Para a eleição majoritária decisiva, Freixo gastou boa parte do precioso tempo que conquistou usando os mesmos vídeos que o PMDB já havia utilizado, sem conseguir expressivos resultados com a estratégia. E ao insistir que os eleitores do adversário eram “manipulados”, não conseguiu provar que a abertura ao diálogo para um Rio melhor que tanto apregoou era com todas as pessoas, e não somente com os que concordassem consigo - e assim praticamente voltou sua campanha para a própria militância, afastando-se do voto popular. O resultado é do conhecimento de todos.

Já que citei que as campanhas derrotadas de Freixo me recordaram as derrotadas de Lula na década de 90 (e que antecederam as vitoriosas do candidato petista na década seguinte), é hora de o candidato socialista tirar dos resultados obtidos um aprendizado e repensar como se aproximar de um eleitorado cada vez mais desinteressado pela política - e que em última análise, pode decidir o rumo de uma votação. A primeira eleição de Lula para presidente, convém lembrar, em muito deveu-se à transformação do “sapo barbudo”, sisudo e combativo, no “Lulinha paz e amor”, um político maduro, conciliador e sorridente. Parece que até mesmo Crivella aprendeu esta lição... Discursos como o do candidato derrotado, “culpando” os cariocas por sua segunda colocação e classificando como “ignorantes” todos os que não votaram nele, em nada ajudam nesta transição. Humildade e uso da autocrítica a seu favor, sim - afinal, outras eleições virão.


AJ Chaves é jornalista e mestre em Ciência da Informação.

Artigo publicado no jornal online Dialogado, em 31 de outubro de 2016.
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Crédito da imagem acima: reprodução do jornal Dialogado.