Artigo

Dois presos, duas medidas
A saída da ex-primeira dama do RJ da cadeia para a prisão domiciliar já registra a primeira vítima: nosso jornalismo


Alunos de jornalismo: preocupem-se desde já com o cuidado ao exercerem sua profissão. O bom e útil jornalismo tem que ser a favor da verdade dos fatos, não a favor de "verdades que o povo quer ouvir" ou de "verdades que eu acredito". Adriana Alcelmo, acusada de integrar quadrilha criminosa, foi liberada não porque tinha prisão provisória (ainda aguardando julgamento) e filhos até 12 anos de idade, mas porque estas crianças seriam privadas, simultaneamente, do convívio da mãe e do pai (o ex-governador Sergio Cabral Filho, réu em seis processos da Lava-Jato até a redação deste artigo, acusado de chefiar o esquema de propinas e lavagem de dinheiro que ocultou cerca de R$ 318 milhões no exterior).

Vi uma reportagem do GloboNews, que cita um levantamento a que teve acesso a emissora, registrando 326 mães de crianças com até 12 anos de idade e que não obtiveram direito a prisão domiciliar. O que a matéria não cita (e nem procura saber) é se alguma delas têm também o marido ou pai da criança preso. Só este levantamento é que permitiria falar em privilégios do Poder Judiciário (como a rapidíssima reversão da prisão fechada em prisão domiciliar, com uso do poder econômico e/ou político) em favor de Adriana – e sem brechas para contestações.

Na semana passada vi também, nas redes sociais e reproduzida em blogs ditos jornalísticos, a foto de uma mãe amamentando um bebê do outro lado da grade, a fim de "ilustrar" a disparidade no tratamento dado a ex-primeira dama e outras mães detentas. Qual deveria ser o foco do verdadeiro jornalismo? Questionar sobre a não existência de creches e espaços para amamentação em todas as prisões, quem são os familiares que ficam com os bebês enquanto as mães estão presas, procurar juristas para saber se a amamentação através das grades é lícita e até mesmo buscar dados de quantas mães engravidaram já dentro das prisões. E obviamente, não reproduzir a fotografia sem crédito – quem fosse procurar o autor da foto descobriria que a mesma foi tirada na Argentina, em 2015. Longe de mim isentar a Adriana de qualquer culpa que tenha, mas colocar todos os holofotes e câmeras na prisão domiciliar dela tira o foco de problemas mais graves nas carceragens femininas brasileiras – que já existiam antes dela ser presa e provavelmente agora voltarão a ficar em segundo ou terceiro plano...

Sempre que o jornalismo resolve ser ao mesmo detetive e advogado de acusação, e ainda quer dar furo de reportagem apurando mal e apressadamente para fazer um noticiário mais "popularesco" e que lhe garanta mais audiência, o resultado é desastroso – vide o caso Escola Base e a suposta agressão sofrida por uma brasileira na Suíça. Infelizmente, muitas vezes é esse jornalismo, também "preso e condenado", a que o povo se habitua e quer ver. Afinal, um povo pobre de jornalismo passa, inevitavelmente, a gostar de um jornalismo mais pobre. Ainda dá tempo de quebrar este círculo vicioso.


AJ Chaves é jornalista e mestre em Ciência da Informação.

Artigo publicado em 2 de abril de 2017.
Permitida a reprodução, desde que com a citação de autor e fonte.
Crédito da imagem acima: Agencia para La Libertad - Argentina (https://agenciaparalalibertad.org/category/349/).